Excerto livro do desassossego
Escolhi para comentar um texto sem título da página 522 do dia 26-1-1932 que se inicia assim:
“Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência, que, por ser consciência, me parece ser a única.” […] “Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e que pense como ele; mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem materializada.” Depois de reflectir sobre este excerto, de interiorizá-lo, dou comigo a concordar com Bernardo Soares. Nunca pensamos nas outras pessoas como seres que partilham as mesmas capacidades, talvez, julgo eu, seja por não conseguirmos ter acesso à consciência deles, pois como é que concluímos que somos iguais se não a ouvimos, se estamos fatalmente sozinhos dentro de nós próprios? Então, começamos a pensar que também podemos imaginar os mesmos gestos humanos e as mesmas palavras genuínas nas personagens dos livros, nas personagens que os actores representam no teatro. Do mesmo modo, achamos que é possível haver personagens nos livros que nos parecem mais reais e mais íntimas do que os indivíduos que se encontram na rua, nos cafés ou no metro. Assim, como poderemos nós achar estes mais reais se não os conhecemos? Não passam de algum boneco robotizado cuja forma da consciência desconhecemos e duvidamos, pois apenas acreditamos no que conhecemos e, para quem é crente, no que cremos. Este facto explica porque existe o desprezo entre homem e homem, a indiferença sentida que permite certas acções contra o outro sem nos importarmos que, talvez, ele também sinta e tenha uma consciência.
“[…]quando ontem me