Ciro flamarion cardoso (uff) - tempo e história
Ciro Flamarion Cardoso (UFF) Prolegômenos É provável que a noção de espaço tenha sido percebida pelos seres humanos antes da de tempo. As línguas mais antigas que nos deixaram documentos − o sumério, o egípcio, o acadiano e o eblaíta − tendiam a espacializar o tempo. O egípcio tardou bastante até mesmo a desenvolver um sistema verbal baseado na noção de tempo: de início, predominava em forma absoluta a noção de aspecto verbal, que distinguia o perfectivo (ações completas), o imperfectivo (ações em ato ou reiteradas) e o prospectivo (ações suscetíveis de ocorrer). Mesmo hoje em dia, qualificamos em português o tempo como “curto” ou “longo”, isto é, com um vocabulário espacial. Podemos até mesmo dizer “um curto espaço de tempo”, que um evento “ficou para trás” ou está “a grande distância no tempo”, por exemplo. Um caso extremamente curioso, por prenunciar intuitivamente a relatividade, é o da língua quêchua. A palavra pacha, cuja acepção mais conhecida e usual designa a terra, como solo e como mundo, assim como sua personificação religiosa numa entidade feminina (na mitologia andina, a terra é feminina, a água em movimento − seja a da chuva, seja a do canal − que vem fecundar a primeira é masculina). Alternativamente, o termo também pode significar tempo, período, circunstância. O mais interessante, porém, é que em certos contextos pacha designa em expressão única, sintética, as noções conjugadas de extensão espacial e intervalo de tempo (um momento ou um período). Assim, por exemplo, no manuscrito de Huarochirí (capítulo I, seção 7), a passagem coni raya vira cocha runa camac pacha camac, início de uma oração à entidade sobrenatural Coni Raya, identificada a outra, Vira Cocha, significa ao pé da letra: “Coni Raya Vira Cocha, que animaste os humanos e animaste a terra-tempo”, isto é, quanto ao último membro de frase, algo como “que animaste o mundo em seu ciclo atual”. Analogamente, em outra passagem do mesmo manuscrito (capítulo 18, seção 221),