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Sobre o nascimento da ciência moderna: estudo iconográfico das lições de anatomia de Mondino a Vesalius
Maurício Chiarello
resumo
A iconografia dos frontispícios dos tratados anatômicos de Mondino, Vesalius e Realdo Colombo, aqui sucintamente apresentada, permite acompanhar um aspecto central da revolução científica dos séculos xvi e xvii: o processo ao longo do qual a autoridade da palavra (dos textos da tradição escolástica) cede lugar para a evidência dos fatos (estabelecidos mediante a observação experimental). O notável desenvolvimento científico e técnico subsequente à consolidação do método matemático-experimental não se realizou, porém, livre de contradições. Inquietações associadas a questões controversas do progresso científico ulterior, como a redução do corpo vivo à matéria inerte e manipulável (própria do mecanicismo) e a sobrevalorização do poder de controle (própria da compulsão tecnológica), podem ser pressentidas desde muito cedo. É o que sugerimos pela interpretação de uma notável obra de arte do século xvii,
“A lição de anatomia do Dr. Tulp”, de Rembrandt.
Palavras-chave ● Ciência moderna. Autoridade. Evidência. Método experimental. Mecanicismo. Controle da natureza. Lição de anatomia. Mondino. Vesalius. Rembrandt.
I
Aqui a palavra é soberana. Poder-se-ia até mesmo dizer que estes frontispícios lá estão mais para serem lidos do que vistos (ver as fig. 1, 2). Os traços que os compõem não delineiam mais que os contornos vazios de figuras sem volume em uma cena quase sem profundidade. A perspectiva é, com efeito, pobre e o espaço da representação reduz-se à dimensão vertical, em torno da qual se organiza hierarquicamente a cena.
No alto e ao centro, põe-se o lector, autoridade suprema de cuja palavra emana a verdade. Seu discurso é o princípio e o fim de tudo o que se desenrola no plano inferior da gravura, ao longo da mesa de dissecção sobre a qual repousa o cadáver. Mas o lector não a vê.