Brisa
Jéssica Sae
Abriu a janela apenas para sentir a navalha do tempo em seu rosto. O desfile de guarda-chuvas parecia tão interminável quanto a garoa fria e suja que caia há mais de um mês. O céu variava em tons de cinza, as nuvens recusando passagem aos raios solares, os bueiros quase entupidos pelo lixo e os pedestres lamentando as roupas molhadas. Mãos secas e ásperas fatiaram o pão e abriram o pote de geleia, porém os lábios só permitiram a entrada do café amargo. O carteiro, novamente, não havia trazido nenhuma carta - o que já se repetia há anos. A mente quase vazia deixou-se levar sobre o nome das coisas que já não cumpriam suas funções de origem, enquanto a televisão comentava sobre a nova tolice de uma celebridade qualquer. Vestiu o agasalho e saiu sem trancar a porta. A garoa era impetuosa, divertia-se com o vento a lamber a face dos passantes, a umedecer suas roupas e estragar-lhes o humor. Era espontânea e livre, ao contrário de todos eles. Dentre tanta palidez, sombra e fumaça de cigarros, havia o corpo alto e magro, quase imperceptível, abrindo caminho entre os demais passantes, ardendo de frio, queimando lentamente. Seus passos duros tentavam contornar as poças de água suja, porém a gola alta do sobretudo não era suficiente para impedir a névoa monótona que lhe atingia. Um giro na maçaneta, uma nuvem de ar quente e luz acolhedora. O barulho da cadeira rígida e descascada, os cotovelos apoiados sobre a mesa. A face cheia de rugas repousou sobre as mãos secas e ásperas e lacrimejou antes de pedir por uma bebida qualquer. Os olhos lutavam para manterem-se abertos, a coluna envergava sozinha e o líquido descia sem pressa pela garganta. Ao redor havia tilintar de talheres, vozes roucas e risadas histéricas, talvez alguns lamentos. O copo é deixado sobre a mesa, os dedos esfregam-se em retângulos de papel, ouve-se um suspiro profundo e a cadeira é arrastada para trás. Havia chegado a hora.