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AUTORIA/AUTONOMIA NA OBRA DE
CLARICE LISPECTOR: UMA LEITURA DO
CONTO “OS DESASTRES DE SOFIA”
Emília Amaral
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e Mestre em Teoria Literária pela
Universidade Estadual de Campinas.
“As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito (...).
Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar – uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras”1.
Neste fragmento exemplar de “Os desastres de Sofia”, defrontamo-nos com algumas marcas discursivas que – na presente altura dos estudos sobre a sua autora
– podemos considerar reconhecidamente características de uma “estética clariceana”: o constante questionamento sobre os poderes (e também sobre os limites, uma vez que para ela os antagonismos não excluem, mas adensam nossa percepção sobre as coisas) da linguagem; a não menos constante tentativa de fazerem coincidir o tempo da
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experiência vivida, o tempo da escrita, que busca representá-la, e o tempo da leitura; a pluralidade de fios, ou seja, de dimensões da existência que uma única história põe em cena, desta forma convertendo-se em “mil e uma, se mil e uma noite me dessem”2.
Se o “enleio” da escritora é perseguir obsessivamente os infinitos fios implicados na tessitura de um “tapete – texto”, se o seu
“enredamento” “vem de que uma história é feita de muitas histórias”, essa fiandeira de inumeráveis tecidos tão habilmente articulados, que remete às milenares imagens femininas de Sherazade e de Penélope, os cria via de regra esbarrando no inominável, no incontável, no irrepresentável; numa palavra, no decantado “indizível”, que permeia toda a sua