Português
Não me importa a palavra, esta corriqueira.Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensívelmuleta que me apóia.Quem entender a linguagem entende Deuscujo Filho é Verbo. Morre quem entender.A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,foi inventada para ser calada.Em momentos de graça, infrequentíssimos,se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.Puro susto e terror.
Adélia Prado
Ausência
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são docesPorque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vidaE eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminadoQuero só que surjas em mim como a fé nos desesperadosPara que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoadaQue ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.Eu deixarei… tu irás e encostarás a tua face em outra faceTeus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugadaMas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noitePorque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosaPorque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaçoE eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciososMas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partirE todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelasSerão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Vinícius de Moraes
A Rua dos Cataventos
Da vez primeira em que me assassinaram,Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.Depois, a cada vez que me mataram,Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu souO mais desnudo, o que não tem mais nada.Arde um toco de Vela