Fahrenheit
A temperatura a que um livro se inflama e consome...
PRIMEIRA PARTE
- A Fornalha e a Salamandra
QUEIMAR ERA UM PRAZER.
Era um prazer muito especial ver as coisas arderem, vê-las calcinar-se e mudar.
Punho de cobre na mão, armado desse imenso piton que cuspia o veneno da sua gasolina sobre o mundo, sentia o sangue bater-lhe nas têmporas e as suas mãos tornavam-se as mãos de uma espécie de maestro prodigioso dirigindo todas as sinfonias do fogo e do incêndio, ao ritmo das quais se desmoronavam os farrapos e as ruínas carbonizadas da história.
Avançou, entre um fulgor de pirilampos.
Teria gostado acima de tudo, segundo a velha tradição, de mergulhar no braseiro uma alcachofra presa na ponta de um pau, enquanto os livros, com um bater de asas, morriam no umbral da casa e no jardim. Enquanto os livros se estorciam entre nuvens de fagulhas e partiam, calcinados, com o vento.
Montag sorriu, com o áspero sorriso de todos os homens chamuscados e repelidos pelas chamas. Sabia que, ao voltar à caserna dos bombeiros, poderia contemplar-se ao espelho, piscando os olhos, transformado em trovador, escurecido como a cortiça queimada. Mais tarde, antes de adormecer na escuridão, sentiria ainda os músculos do rosto arrepanhados pelo sorriso do fogo. Nunca esse sorriso o abandonava, nunca o tinha abandonado, tanto quanto se podia lembrar.
Tirou o capacete negro, de reflexos acobreados, e limpou-o. Pendurou com cuidado o seu casaco ignífugo; tomou um banho, voluptuosamente; depois, de mãos nas algibeiras e assobiando, atravessou o andar superior do edifício e deixou-se escorregar pelo poço central. No último momento, quase a esmagar-se em baixo, tirou as mãos das algibeiras e travou a descida, agarrado à vara de bronze.
Os pés a alguns centímetros do chão de cimento, imobilizou-se num silvo agudo.
Saiu da caserna e dirigiu-se ao "metro", pela rua nocturna.
O comboio, movido a ar comprimido, deslizava sem ruído ao longo do túnel subterrâneo e