Cotidianidade e hermenêutica em Ser e tempo: breves considerações
Priscila Leal Bispo Lopes1
A condição de existente é algo com o qual o humano tem que lidar, posto que constitui a sua condição fáctica. Entretanto, apesar disso estar dado, o humano vive às voltas para dar sentido a essa sua condição. Talvez esse empenho nem se justifique, pensaria alguém mais pragmático, mas não são as justificativas racionais que receberão dedicação neste texto, e sim o insistir humano em dar sentido ao que lhe circunda. Esse insistir, constitutivo da condição humana, foi alvo da tarefa heideggeriana de aproximar a lida cotidiana da discussão sobre a hermenêutica. Antes de apresentar os conceitos heideggerianos que sustentam o que em tão poucas palavras foi anunciado anteriormente, um importante exercício precisa ser feito. O desafio requer esforço para esboçar um cenário em um dado tempo cronológico. Trata-se de uma cena, uma fotografia de um escritório em meados do século XIX, que pode ser descrito da seguinte maneira: um estreito espaço onde contém uma mesa em Peroba maciça. Ela possui uma prancha de apoio lateral que fica a esquerda e mais cinco gavetas. Sob esta mesa encontra-se uma máquina de escrever. Logo ao seu lado, algumas folhas de papel e uma caneta-tinteiro. Acima, um relógio de parede com vários trabalhos de entalhe na madeira. É o cenário onde um poeta passa longas horas datilografando seus escritos.
Diria Heidegger que os utensílios que estão no mundo circundante deste homem interligam-se numa trama conjuntural e fornecem o horizonte de sentido de seu labor. O homem, alvo da análise heideggeriana, não equivale a um sujeito que, mediante a sua racionalidade representacional, objetifica seu entorno. O homem, para Heidegger, é Dasein
(ser-aí),2 um ente privilegiado que se move numa compreensão de ser. Tal compreensão, contudo, não é algo racional, da ordem do entendimento, mas uma abertura para o campo de sentidos que se abre, de início e na maioria das vezes, na