Coletânea de poemas
Motivo
Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias no vento.
Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei.
Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Cecília Meireles
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília Meireles
A onda
a onda anda aonde anda a onda? a onda ainda ainda onda ainda anda aonde? aonde? a onda a onda
Manoel Bandeira
O Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira
A ROSA DE HIROXIMA
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
Vinícius de Moraes
SONETO DO MAIOR AMOR
Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente