Campo e extra campo
Uma das principais características do cinema moderno é a maneira como ele convoca o espectador. Temos na obra de Michelangelo Antonioni, um de seus grandes mestres, exemplos de filmes sobre os quais podemos evidenciar o papel do espectador na participação ativa de construção de sentidos. “A Noite” (La Notte, 1961), nesse aspecto, é um filme privilegiado. Junto de “A Aventura” (L’avventura, 1960) e “O Eclipse” (L’eclisse, 1962), “A Noite” faz parte do que se convencionou chamar de "trilogia da incomunicabilidade". Podemos dizer que os corpos dos personagens perturbados e errantes que “habitam” “A Noite” são sintomáticos. Eles carregam em si o que resta de experiências passadas – quando pensamos na diegese filme. “A Noite” já começa com um relacionamento em decadência, uma vida dando seus últimos pulsos no hospital, uma carreira em crise, uma mulher desiludida. Por mais que existam vestígios espalhados na narrativa, aquilo que perturba esses personagens entra em cena de forma enviesada, como um fantasma que os assombra, invisível, mas sempre presente. Para percebê-lo, é importante que o espectador se relacione com o aquilo que está além das ações e formulações.
Nos aproximamos aqui de uma percepção do cinema de Jean-Louis Comolli (2006), que afirma que o espectador, ao ter contato com uma obra, é chamado a partilhar não apenas do pleno, do visível, mas de tudo que ali há de potência, o que mesmo presente não se ouve nem se vê. Entre as falas, os gestos, há um “devir possível”, uma promessa ou ameaça externa a ser sentida pelo espectador. Convidado a participar do desvendamento da cena, a perceber o que dela se abre, o espectador pode perceber o real que o filme institui.
Pensar na potência invisível presente no filme, como afirma Deleuze (1985), é possível por causa da ambigüidade