Axyg
12240 palavras
49 páginas
Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas,pátios calçados com pedras antigas... De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio... De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender O que ele dizia: "Tempus fugit". E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes úmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além—mar — "dingueledingue que eu vou para Angola, dingue—le—dingue que eu vou para Angola"— de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência... O relógio batera aquelas horas — e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a Corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: "Não quero morrer..." Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda— (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito