Análise da proposição dos Lusiadas
1 As armas e os barões assinalados1
Que, da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana2,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino3, que tanto sublimaram;
2 E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas4
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte5 libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho6 e arte7.
3 Cessem do sábio Grego8 e do Troiano9
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro10 e de Trajano11
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano12,
A quem Neptuno e Marte13 obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga14 canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Os Lusíadas (I, 1-3)
Como vimos, a finalidade da proposição, em qualquer epopeia, é a enunciação do assunto que o poeta se propõe tratar. Assim é, também, n’ Os Lusíadas: Camões está decidido a tornar conhecido em todo o mundo o valor do povo português (“o peito ilustre lusitano”). E para isso estrutura a sua proposição em duas partes: nas duas estâncias iniciais, enuncia os heróis que vai cantar; na segunda parte, constituída pela terceira estrofe, estabelece um confronto entre os portugueses e os grandes heróis da Antiguidade, afirmando a superioridade dos primeiros sobre os segundos. Que o herói desta epopeia é colectivo, é um facto incontestável. Quanto a isso, o próprio título é inequívoco: os “lusíadas” são, afinal, os portugueses — todos, não apenas os passados, mas até os presentes e futuros, na medida em que assumam as virtudes que caracterizam, no entendimento do poeta, o povo português e que ele sintetiza, na dedicatória a D. Sebastião, desta forma:
amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno15