Antologia
Solitário
Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!
Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!
Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí como quem tudo repele,
---- velho caixão a carregar destroços ----
Lavando apenas na tumba a carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!
Carlos Drummond de Andrade
Os Ombros Suportam o Mundo
Chega um tempo em que não se diz mais nada: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais nada: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem a porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha à velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
E ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
Provam apenas que a vida prossegue
E nem todos se libertaram ainda.
Alguns acham bárbaro o espetáculo,
Prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou o tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Cecília Meireles
Se eu fosse apenas...
Se eu fosse apenas uma rosa,
Com que prazer me desfolhava,
Já que a vida é tão dolorosa
E não te sei dizer mais nada!
Se eu fosse apenas água ou vento,
Com que prazer me desfaria,
Como em teu próprio pensamento
Vais desfazendo a minha vida!
Perdoa-te causar-te a mágoa
Desta humana, amarga demora!
----- de ser menos breve do que água, mais durável que o vento e que a rosa...
Fernando Pessoa
Álvaro de campos
Lisboa