713833 A PAIX O NOS TEMPOS DO DSM
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A PAIXÃO NOS TEMPOS DO DSM :SOBRE O RECORTE OPERACIONAL DO CAMPO DA PSICOPATOLOGIA
Mário Eduardo COSTA PEREIRA1 Argumento
O enorme sucesso obtido pelos sistemas operacionais de classificação dos transtornos mentais, cujo paradigma contemporâneo é o DSM-IV, transformou inteiramente o campo da psicopatologia. Definida de forma ampla como disciplina que se ocupa do sofrimento psíquico ou, segundo a perspectiva médica, como ciência das doenças mentais, a psicopatologia perde progressivamente seu papel de fundamento das práticas psiquiátricas, cedendo lugar a um convencionalismo nosográfico que busca responder aos ideais de uniformização de linguagem nesse campo.
Uma das conseqüências mais evidentes do triunfo dessa forma de se recortar os fenômenos psicopatológicos foi a constituição de um discurso hegemônico, de natureza empírica e pragmática, que delibera sobre a legitimidade das metodologias e das proposições teóricas nesse campo. Graças ao empirismo e ao pragmatismo embutidos em seus pressupostos e ocultos sob o manto de um pretenso «ateorismo», o DSM terminou, na prática, por excluir do debate cientificamente autorizado todas as disciplinas cuja abordagem do sofrimento psíquico não repousasse sobre definições convencionais de fatos clínicos imediatamente constatáveis. Este é o caso notadamente da fenomenologia, da psicanálise e da análise existencial.
Dessa forma, tradições importantes da abordagem do psicopatológico foram relegadas a um segundo plano justamente por não se adaptarem às exigências do tipo científico-naturais subjacentes às definições positivadas dos sistemas diagnósticos operacionais. Resulta, desse estado de coisas, uma concepção cada vez mais naturalizada do padecimento mental, de modo que as dimensões históricas, culturais, subjetivas e existenciais nele implicadas, passam a ser vistas como irrelevantes ou como perigosamente inefáveis - meros resquícios de metafísica aguardando pela redução científica ao plano neurobiológico,