20080624 A Poesia Envenenada
6522 palavras
27 páginas
A POESIA ENVENENADADE DOM CASMURRO
Roberto Schwarz
Dom Casmurro (1899) é um bom ponto de partida para apreciar a distância, na verdade o adiantamento, que separava Machado de Assis de seus compatriotas. O livro tem algo de armadilha, com aguda lição crítica — se a armadilha for percebida como tal. Desde o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que vão formando um enigma. A eventual solução, sem ser propriamente difícil, tem custo alto para o espírito conformista, pois deixa mal um dos tipos de elite mais queridos da ideologia brasileira. Acaso ou não, só sessenta anos depois de publicado e muito reeditado o romance, uma professora norteamericana (por ser mulher? por ser estrangeira? por ser talvez protestante?) começou a encarar a figura de Bento Santiago — o Casmurro — com o necessário pé atrás. É como se para o leitor brasileiro as implicações abjetas de certas formas de autoridade fossem menos visíveis.
Depois de contar o idílio de sua adolescência, completado pelo casamento em que seria traído e pelo desterro até a morte a que obrigou a companheira e seu filho duvidoso, Dom Casmurro conclui por uma pergunta a respeito de Capitu: a namorada adorável dos quinze anos já não esconderia dentro dela a mulher infiel, que adiante o enganaria com o melhor amigo? Induzido a recapitular, o fino leitor prontamente lembrará por dezenas os indícios do calculismo e da dissimulação da menina. Entretanto, considerando melhor, notará também que as indicações foram espalhadas com muita arte pelo próprio narrador, o que muda tudo e obriga a inverter o rumo da desconfiança. Em lugar da evocação, do memorialismo emocionado e sincero, que pareceria merecer todo o crédito do mundo, surgem o libelo disfarçado contra Capitu e a torturosa autojustificação de Dom Casmurro, que, possuído pelo ciúme, exilara a família. O livro, assim, solicita três leituras sucessivas: uma, romanesca, onde acompanhamos a formação e decomposição de um amor; outra, de ânimo