Âmago literário
‘Costumo ir a Praça Kennedy todas as sextas-feiras à tarde depois da escola. Sempre igual: velhinhos jogando baralho em mesas de concreto, um educado ou outro retirando uma latinha do chão, crianças buscando divertimento nos balanços e um casal de velhinhos sentados no banco. A praça não é nenhum atrativo da cidade, está sempre quase vazia e silenciosa.
Levanto-me e vou até a barraca de sorvete. Uma, duas, três crianças na fila. Pedirei um de baunilha. Enquanto espero minha vez, reparo o tal casal de velhinhos. Na verdade, nunca vi sequer um beijo entre eles, mas como estão sempre juntos, deduzi que são casados. O velho levanta rápido, como uma surpresa, e larga um sorriso em direção à companheira, segurando as suas mãos. Ela levanta e o velho começa a se mexer, pra lá e pra cá, contagiante. Ela o acompanha. Movimentos suaves, em todas as direções. Não demonstram cansaço. Um giro para a esquerda, uma levantada de perna... Mágico! Dançam livremente, como se estivessem sozinhos. Dançam com os semblantes iluminados, refletindo suas jovens almas. Não há música, encontram notas no silêncio, ou quem sabe, dentro de si próprios. Um, dois, três… um, dois, três… Seus passos são simultâneos. Com amor, fazendo arte bonita, bem vivida anos inteiros. Riem enquanto se movem e seus risos soam como uma bela melodia. Produzindo a própria música, dançando a própria obra. Em que a dança supera qualquer forma de afeto. - Moça, o que deseja? - interrompe o vendedor de sorvete. - Ah, me desculpe - digo timidamente. - Gostaria de um sorvete de baunilha, por favor. Ou melhor, o sorvete mais doce que tiver. Doce como aquela dança.