O uso da morte entre o castigo e a redenção
Olhando e procurando entender a diferença, a antropologia funcionou durante muito tempo como um discurso que procurou evidenciar o relativismo. À certeza do rumo de uma sociedade e modelo cultural cada vez mais universal, a antropologia oporia então o relato de práticas diferentes, muitas vezes estranhas e bizarras, mas que ajudavam, mesmo que de forma limitada, a perceber que as nossas ‘verdades’ não são, afinal, absolutas e definitivas. Poder-se-ia falar da pena de morte, ou mais amplamente do crime e do castigo, sob esta óptica. Tratar-se-ia, então, de ver como a diversidade dos crimes e punições estilhaça as certezas que sobre este tema frequentemente se constróem. Se a pena de morte é a expressão extrema da punição de indivíduos que por sua escolha cometeram actos socialmente graves e irreparáveis, como compreender, por exemplo, o julgamento de um crocodilo em Madagáscar, que, acusado de ter desrespeitado um acordo de não-agressão com o homem, acabou sendo condenado à morte?2
Esta punição de um animal, que de resto a Bíblia também prevê3, levanta várias questões: o que nos ensina ela da responsabilidade do criminoso? Que pensar da articulação entre a sociedade dos homens e a ‘sociedade’ dos crocodilos? Ou, mais fundamentalmente, como considerar a legitimidade de quem julga e julgando impõe a outros um conjunto de regras que ele próprio definiu?
A condenação do crocodilo ilustra bem aquele que será talvez o papel mais
1
Intervenção feita em 1 de Julho de 1995 num debate sobre a Pena de Morte organizado pela Amnistia
Internacional e que teve lugar na Faculdade de Filosofia em Braga.
2
Cf. Lévy-Bruhl, Henri, “L’Ethnologie Juridique”, in Poirier, Jean (dir.),Ethnologie Générale, Paris,
Gallimard, 1968, p. 1166.
3
1
Veja-se nomeadamente Êxodo 21.
evidente da antropologia numa discussão sobre a pena de morte: mostrar a diferença, apelar ao relativismo cultural como atitude