O quinze
Sentada na espreguiçadeira da sala, Conceição lia, com os olhos escuros intensamente absorvidos na bro- chura de capa berrante.
Na paz daquela manhã de domingo, um silêncio
5 doce tudo envolvia, e algum ruído que soava, logo era abafado na calma sonolenta.
Maciamente, num passo resvalado de sombra, Dona
Inácia entrou, de volta da igreja, com seu rosário de gran- des contas pretas pendurado no braço.
10 Conceição só a viu quando o ferrolho rangeu, abrindo:
- Já de volta, Mãe Nácia?
- E você sem largar esse livro!
Até em hora de missa!
A moça fechou o livro rindo:
- Lá vem a Mãe Nácia com briga! Não é domingo?
15 Estou descansando.
Dona Inácia tomou o volume das mãos da neta e olhou o título:
- E esses livros prestam para moça ler, Conceição?
No meu tempo, moça só lia romance que o padre
20 mandava...
Conceição riu de novo:
- Isso não é romance, Mãe Nácia. Você não está vendo? É um livro sério, de estudo...
- De que trata? Você sabe que eu não entendo
25 francês...
Conceição, ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do tema da obra, procurando ingenuamente encaminhar a avó para suas tais idéias:
- Trata da questão feminina, da situação da mulher
30 na sociedade, dos direitos maternais, do problema...
Dona Inácia juntou as mãos, aflita:
- E minha filha, para que uma moça precisa saber disso? Você quererá ser doutora, dar para escrever livros?
Novamente o riso da moça soou:
35 - Qual o quê, Mãe Nácia! Leio para aprender, para me documentar... - E só para isso, você vive queimando os olhos, ema- grecendo... Lendo essas tolices..
- Mãe Nácia, quando a gente renuncia a certas
40 obrigações, casa, filhos, família, tem que arranjar outras coisas com que se preocupe... Senão a vida fica vazia demais... - E para que você torceu sua natureza? Por que não se casa?
45 Conceição olhou a avó de revés, maliciosa:
- Nunca achei quem valesse a pena...
Rachel de Queirós, O quinze, Rio de Janeiro,