O ovo
I
Ao olho mostra a integridade de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária, maciçamente ovo, num todo.
Sem possuir um dentro e um fora, tal como as pedras, sem miolo: é só miolo: o dentro e o fora integralmente no contorno.
No entanto, se ao olho se mostra unânime em si mesmo, um ovo, a mão que o sopesa descobre que nele há algo suspeitoso:
que seu peso não é o das pedras, inanimado, frio, goro; que o seu é um peso morno, túmido, um peso que é vivo e não morto.
II
O ovo revela o acabamento a toda mão que o acaricia, daquelas coisas torneadas num trabalho de toda a vida.
E que se encontra também noutras que entretanto mão não fabrica: nos corais, nos seixos rolados e em tantas coisas esculpidas
cujas formas simples são obra de mil inacabáveis lixas usadas por mãos escultoras escondidas na água, na brisa.
No entretanto, o ovo, e apesar de pura forma concluída, não se situa no final: está no ponto de partida.
III
A presença de qualquer ovo, até se a mão não lhe faz nada, possui o dom de provocar certa reserva em qualquer sala.
O que é difícil de entender se se pensa na forma clara que tem um ovo, e na franqueza de sua parede caiada.
A reserva que um ovo inspira é de espécie bastante rara: é a que se sente ante um revólver e não se sente ante uma bala.
É a que se sente ante essas coisas que conservando outras guardadas ameaçam mais com disparar do que com a coisa que disparam.
IV
Na manipulação de um ovo um ritual sempre se observa: há um jeito recolhido e meio religioso em quem o leva.
Se pode pretender que o jeito de quem qualquer ovo carrega vem da atenção normal de quem conduz uma coisa repleta.
O ovo porém está fechado em sua arquitetura hermética e quem o carrega, sabendo-o, prossegue na atitude regra:
procede ainda da maneira entre medrosa e circunspeta, quase beata, de quem tem nas mãos a chama de uma vela.