A passagem do mito à filosofia
Há grandes diferenças entre o pensamento mítico e o pensamento filosófico em seu surgimento, principalmente no sentido do que poderíamos identificar como um novo olhar, um “olhar filosófico” dentro da cultura grega que surge com uma tendência a se desmistificar os mistérios, racionalizar o que facilmente se aceitava da tradição e que buscou, acima de tudo pela percepção sensorial com a aplicação da razão, da physis sobre a physis, ou seja, do homem sobre a composição de tudo o que há incluindo ele próprio, uma busca pela arché, pelo princípio.
Contudo, a que se deve tal tendência senão pela própria necessidade de se constituir uma cosmologia, algo que não fosse cosmogônico, mas, que o substituísse? Poderíamos estabelecer, ao menos de forma análoga, uma ligação entre este momento e a tradição cosmogônica, ou seja, uma necessidade de se explicar a constituição do que há, entender como se deu a ordem do kosmos, mas, a necessidade agora é a eliminação dos mistérios e a necessidade de ser tal explicação possível em termos racionais. No entanto, não podemos supor que toda a construção foi isenta de “conceitos” da tradição mítica, o próprio princípio, arché, mantém características análogas às “divinas”.
Com Anaximandro podemos perceber tais semelhanças: o apeíron que é ilimitado é regido por uma Justiça, dike e ao passo que, do apeíron surgem por segregação e diferenciação os pares de opostos, que se separando e se juntando formam tudo o que há, assim que um dos antagônicos tende ao poder, estabelece o desequilíbrio até que chegue o momento deste pagar sua injustiça, adike, ele enfraquece e volta ao apeíron. Tudo vem dele e para ele retorna. É certo que esta construção não tem nada da tradição religiosa em seu texto, em sua argumentação, porém, a separação do apeíron que gera os pares antagônicos pode ser facilmente comparada, em termos de construção, ao preceito mitológico da separação do Caos e o surgimento dos deuses primordiais,