A humanização do divino em "O evangelho segundo Jesus Cristo", de José Saramago
O primeiro capítulo do livro de José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo, trata da descrição interpretativa de uma gravura da série “A Grande Paixão”, de Albrecht Dürer (1471-1528), considerado o grande artista do renascimento alemão. A crucificação é mostrada por meio da gravura, não apenas por descrição, mas também como uma interpretação da imagem pintada pelo artista. Mesmo que não conheçamos a obra de Dürer, é possível concluir que estamos diante de uma imagem construída por palavras, que se refere à outra, uma vez que o narrador nos mostra esse fato ao usar expressões como: o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada – podendo ser uma referência tanto à gravura quanto ao próprio livro. Assim, percebemos que o romance começa com a crucificação de Cristo, o que nos leva a pensar na inversão em relação ao texto bíblico, que segue uma certa ordem cronológica dos acontecimentos: nascimento, ministério, paixão e morte de Jesus. O evangelho segundo Jesus Cristo modifica essa ordem, sendo um claro indicativo para o leitor do teor subversivo que contém. A visão impar de José Saramago, sobre uma já tão conhecida história, não agride o ponto central das crenças, a santidade de Jesus, mas dá sentimentos humanos normais a Ele, a Deus, ao Demônio e a todas as outras personagens. Em um texto que sempre nos soa como temperado com boa pitada de ironia, por vezes até engraçado e sempre muito reflexivo, Saramago carrega essas personagens com grande peso de suas impressões pessoais do homem, da igreja e da sociedade.
Os Seres Divinos, em O evangelho segundo Jesus Cristo, são todos eles repletos de humanidade e o autor, com o uso da paródia: “[...] Deus, nas empíricas alturas, respira, comprazido, os odores da carnagem” (SARAMAGO, 2003, p. 249) e da carnavalização: “Se por um atraso nas comunicações ou enguiço da tradução simultânea, ainda não chegou ao céu notícia de tais ordens, muito admirado deverá estar o Senhor Deus [...]” (SARAMAGO,