A Escritora em Braille - Peça Curta Teatral
Documento: Peça teatral
Número de páginas: 17 laudas
Autora: Maria Sobral
São Paulo, Abril, 2011.
PERSONAGENS
Lúcia Antero
Célio Antero – marido de Lúcia, deficiente visual falecido
Armênia Aguiar – mãe de Célio
Isabela Saiz – amiga de Lucia
AndreaSoto–policial CENA I
Tarde, interior de um apartamento quarto-sala na Rua Matias Aires. Lúcia que acaba de voltar do enterro do seu companheiro está vestida de preto escorada na porta fechada como se tivesse acabado de fechar a porta após uma pesada caminhada sozinha desde o cemitério. Lúcia anda e dirige-se à cama onde se senta e fala olhando para as paredes.
LÚCIA:
No dia em que o mundo acabou, meu nome era Lúcia e eu tinha acabado de perdê-lo. Em meio a uma multidão de pessoas possíveis, encontrei um deficiente visual que conseguia o que ninguém, nenhum outro homem tinha até então conseguido: ele me via. Logo ele. Ele ouvia o ritmo da minha respiração intercalando o som da minha voz e minhas palavras. Sabia o detalhe certo do meu ânimo momentâneo. Ele me cheirava ao seu redor e através do odor do meu suor ele identificava imediatamente o quanto eu tinha me apressado para chegar a um local, ou a chegada do meu mênstruo, ou mesmo todo o meu último entorno mais recente. ‘Você cheira a fruta!’, acertava sempre. Ele me tocava as mãos, ou a pele, e já sabia se eu estava nervosa, feliz, fleumática ou leve pela temperatura da minha pele e o movimento dos meus dedos nos dele. Admito que pensei por tempos que a sensibilidade natural aguçada que ele tinha, aliada à minha vulnerabilidade emocional quando junto a ele, era o que me dava forma nos seus olhos internos. Porém, eu nunca fui uma mulher óbvia. Sempre camuflei os meus próprios pensamentos muito bem, com indiferença a eles ou dando importância às minhas oscilações de humores. As pessoas que se diziam dadas a certa sensibilidade, seja de tom espírita, mediúnica, ou medíocre apelidavam-me de sorrateira ou manipuladora. Quem sente, sofre.