A Dialéctica do Esclarecimento e outros textos de Theodor W. Adorno
Theodor W. Adorno
(1903 - 1969)
A DIALÉCTICA DO ESCLARECIMENTO
Fragmentos Filosóficos
EXCURSO I
Ulisses ou Mito e Esclarecimento
Assim como o episódio das sereias mostra o entrelaçamento do mito e do trabalho racional, assim também a Odisseia em seu todo dá testemunho da dialética do esclarecimento. Sobretudo em seus elementos mais antigos, a epopeia mostra-se ligada ao mito: as aventuras têm origem na tradição popular. Mas, ao se apoderar dos mitos, ao "organizá-los", o espírito homérico entra em contradição com eles. A assimilação habitual da epopeia ao mito - que a moderna filologia clássica, aliás, desfez - mostra-se à crítica filosófica como uma perfeita ilusão. São dois conceitos distintos, que marcam duas fases de um processo histórico nos pontos de sutura da própria narrativa homérica. O discurso homérico produz a universidade da linguagem, se já não a pressupõe. Ele dissolve a ordem hierárquica da sociedade pela forma exotérica de sua exposição, mesmo e justamente onde ele a glorifica. Cantar a ira de Aquiles e as aventuras de Ulisses já é uma estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar, e o herói das aventuras revela-se precisamente como um protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem origem naquela auto-afirmação unitária que encontra seu modelo mais antigo no herói errante. Na epopeia, que é o oposto histórico-filosófico do romance, acabam por surgir traços que a assemelham ao romance, e o cosmo venerável do mundo homérico pleno de sentido revela-se como obra da razão ordenadora, que destrói o mito graças precisamente à ordem racional na qual ela o reflete.
O discernimento do elemento esclarecedor burguês em Homero foi enfatizado pelos intérpretes da antiguidade ligados ao romantismo tardio alemão e que seguiam os primeiros escritos de Nietzsche. Nietzsche conhecia como poucos, desde Hegel, a dialética do esclarecimento. Foi ele que formulou sua