Viveiros De Castro 2002 O Conceito De Sociedade Em Antropologia Txt
Eduardo Viveiros de Castro
Os dois sentidos: o geral e o particular
Em sentido geral, a sociedade é uma condição universal da vida humana. Esta universalidade admite uma interpretação biológica ou instintual, e outra simbólicomoral, ou institucional. Assim, a sociedade pode ser vista como um atributo básico, mas não exclusivo, da natureza humana: somos geneticamente predispostos à vida social; a ontogênese somática e comportamental dos humanos depende da interação com seus conspecíficos; a filogênese de nossa espécie é paralela ao desenvolvimento da linguagem e do trabalho (da técnica), capacidades sociais indispensáveis à satisfação das necessidades do organismo. Mas a sociedade também pode ser vista como dimensão constitutiva e exclusiva da natureza humana, definindo-se por seu caráter normativo: o comportamento humano tornase agência social ao se fundar, não em regulações instintivas selecionadas pela evolução, mas em regras de origem extra-somática historicamente sedimentadas.
A noção de ‘regra’, aqui, pode ser tomada em sentido moral e prescritivo-regulativo
(como no estrutural-funcionalismo) ou cognitivo e descritivo-constitutivo (como no estruturalismo e na ‘antropologia simbólica’); apesar desta importante diferença, em ambos os casos a ênfase nas regras exprime o caráter instituído dos princípios da ação e da organização sociais. Os conteúdos normativos da sociedade humana, sendo realidades institucionais, variam no tempo e no espaço, mas a existência de regras é um invariante formal; como tal, ele seria a característica distintiva da condição social, que deixa aqui de ser uma ‘coisa‘ evolucionária, um dos componentes centrais do etograma do Homo sapiens (a ‘espécie humana’), e passa a definir uma forma de existência marcada pela historicidade, a ‘Humanidade’ enquanto entidade ontologicamente única (a ‘condição humana’), composta não
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Nota do autor. Este texto foi originalmente encomendado por e