Um homem de letras
Em janeiro de 2002 recebi uma carta de Howard Engel, escritor canadense conhecido pela série de histórias do detetive Benny Cooperman, em que descrevia um estranho problema. Contou que alguns meses antes, acordou certa manhã sentindo-se bem, vestiu-se, preparou o desjejum e foi até a varanda pegar o jornal. Mas o jornal ao pé da porta parecia ter sofrido uma transformação impressionante:
O Globe and Mail de 31 de julho de 2001 parecia o mesmo de sempre, na composição, nas ilustrações, nos cabeçalhos e nas legendas menores. A única diferença era que eu não conseguia mais ler o que estava escrito ali. Eu podia ver que as letras que o compunham eram as 26 letras do alfabeto inglês com as quais eu estava habituado. Só que agora, quando eu as focalizava, ora pareciam cirílico, ora coreano. Seria uma versão servo-croata do meu jornal, feita para exportação? [...] Estaria alguém me pregando uma peça? Tenho amigos bem capazes de coisas assim. [...] Fiquei tentando imaginar alguma gracinha ainda maior para retribuir. Depois pensei na possibilidade alternativa. Verifiquei as páginas internas do jornal, para ver se eram tão estranhas quanto a primeira. Olhei os classificados e os quadrinhos. Também não consegui ler nada. [...] O pânico deveria ter me dominado por completo, mas não. Em vez disso, fui tomado por uma calma racional, prática. "Já que não é alguém fazendo uma brincadeira, só posso ter sofrido um derrame".
Junto com essa conclusão veio-lhe a lembrança de um relato que lera alguns anos antes, "O caso do pintor daltônico", de minha autoria.[1] Recordou-se especificamente de que o sr. I., meu paciente, descobriu ser incapaz de ler o boletim de ocorrência sobre um acidente que sofrera e que lhe causara uma lesão na cabeça — via letras de diversos tamanhos e tipos, mas não conseguia decifrá-las, e disse que "pareciam grego ou hebraico". Lembrou também que a incapacidade do sr. I. para ler, sua alexia, durara cinco dias e depois desaparecera.