tica
Texto I
Irmãos
_ De vez em quando eu penso neles...
_ Quem?
_ Nos espermatozóides...
_ De vez em quando você pensa em seus espermatozóides?
_ No meus, não. Nos do meu pai.
_ Você está bêbado.
_ Na noite em que fui concebido...suponho que tenha sido uma noite... eu era um entre milhões de espermatozóides. Mas só eu cheguei ao óvulo da mamãe. Ou seria bilhões?
_ Acho que é óvulo mesmo.
_ Não. Os espermatozóides. São milhões ou bilhões?
_ Ahn...Não sei.
_ Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isso é mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóides junto comigo e só eu, entende?, só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
_ É.
_ Você acha mesmo?
_ Acho.
_ Podia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
_ Amendoim?
_ Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isso?
_ É como você diz. A gratuidade da coisa.
_ Não, não. Isso que estou bebendo.
_ É, ahn, uísque.
_ Uísque. Pois então. Aí está.
_ Ó Moacyr, vê outro aqui. O rapaz está precisando.
_ Um brinde!
_ Um brinde.
_ A eles!
_ Quem?
_ Aos espermatozóides que não chegaram ao óvulo da mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não vieram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!
_ Aos meus irmãos!
_ Meus irmãos. Você não estava lá.
_ Aos seus irmãos!
_ Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
_ Salve.
_ Agora me diga uma coisa.
_ Duas. Digo duas.
_ Cada espermatozóide é uma pessoa diferente, certo? Quer dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozóide tivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
_ Depende.
_ Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher. Certo?
_ Não vamos exagerar...
_ Então,