Texto 1 DAMATTA V
CARNAVAIS, MALANDROS E HERÓIS
PARA UMA SOCIOLOGIA DO DILEMA BRASILEIRO
6a edição
Rio de Janeiro — 1997
IV
SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO? UM ENSAIO SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE INDIVÍDUO E PESSOA NO BRASIL I
Até agora, estive estudando ocasiões especiais da vida social do Brasil. Sendo assim, focalizei pelo menos três formas básicas de apresentação (e representação) ritual da sociedade brasileira: o carnaval, a Semana da Pátria e as procissões religiosas da igreja Católica Romana. Sabemos que todas essas formas de desfile, exibição e congraçamento social são extraordinárias e reveladoras de aspectos importantes de nossa ordem social. Além disso, essas formas são sempre situadas na categoria geral de "festas", indicando-se os seus denominadores comuns como eventos com traços semelhantes.
E realmente, tais momentos se caracterizam por serem coletivamente bem marcados, estarem oficialmente vinculados à sociedade e à cultura brasileiras através de alguns órgãos do Estado, serem festividades e, como tal, ocasiões de profunda motivação político-social, serem momentos especiais na vida social brasileira e assim definidos pelas populações que os realizam. Agora, porém, é minha intenção interpretar sociologicamente um outro ritual brasileiro que guarda com os até agora estudados uma relação certamente simétrica e inversa.
Estou obviamente me referindo ao rito do "sabe com quem está falando?", que implica sempre uma separação radical e autoritária de duas posições sociais real ou teoricamente diferenciadas. Talvez por isso, essa maneira de dirigir-se a um outro, tão popular entre os brasileiros, seja sistematicamente excluída dos roteiros — sérios ou superficiais — que visam a definir os traços essenciais de nosso caráter como povo e nação.1 O "sabe com quem está falando?", além de não ser motivo de orgulho para ninguém — dada a carga considerada antipática e pernóstica da expressão —, fica escondido de imagem (e auto-imagem) como um modo indesejável de ser