Segundo tratado ao governo
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CAPÍTULO VI: Do pátrio poderHaverá quem censure e critique por impertinente, em um discurso desta natureza, apontar os erros contidos em palavras e nomes aceitos no mundo todo; parece-me, todavia, que será oportuno apresentar novos termos, uma vez que os antigos tornaram-se suscetíveis de induzir o homem ao erro, conforme provavelmente ocorreu com a expressão “pátrio poder”, que parece atribuir exclusivamente ao pai o poder sobre os filhos, como se a mãe dele não tivesse parte; se porém, consultarmos a razão e a revelação, constataremos que cabe à mãe igual direito. Diante disso, é justificável indagar se não seria mais correto denominar esse direito de “poder dos pais”, em relação a toda obrigação que a natureza e o direito de geração impõem aos filhos, com certeza igualmente subordinados a ambos que lhe foram causa. E consoante a isso, temos a lei positiva de Deus, juntá-los por toda parte sem qualquer distinção quando ordena a obediência dos filhos: “ honra pai e mãe”; ”Quem quer que amaldiçoes o pai e a mãe”. Se esta circunstancia tivesse recebido atenção suficiente, sem aprofundar mais a questão, talvez a humanidade não tivesse cometido os grandes erros que cometeu a respeito desse poder dos pais. A idade ou a virtude podem atribuir ao homem uma proeminência merecida; a excelência dos dotes e o mérito colocarão outros acima do nível comum. Igualdade a que me referia como conveniente ao assunto em questão, igualdade natural, sem se sujeitarem a vontade ou ao arbítrio de outrem.Os pais lhe impõem uma espécie de regra e jurisdição quando vêm ao mundo, e a conserva ainda por algum tempo, mas tal poder e temporário. A lei a que devia estar sujeito Adão era a mesma que teria de governar lhe toda a descendência: a lei da razão. Todavia, como esta posteridade teve outro modo de vir ao mundo, pelo nascimento natural que os gerou ignorantes e desprovidos do uso da razão. Não ficaram realmente sob a lei; e sendo tal lei promulgada e conhecida apenar por meio da razão,