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1. Reponta no Brasil um velho traço cultural que pode iluminar esta discussão toda. Trata-se do formalismo, uma clara dissociação entre o discurso e a prática; o enunciado e o vivido; o país legal e o país real; os códigos formalizados de conduta e os expedientes espertos do dia-a-dia; as declarações de boas intenções e o cinismo dos arranjos de conveniência.
2. Urde-se, no fluxo do cotidiano, um jogo de faz-de-conta, uma tessitura de pantomimas e de cumplicidades. As incoerências, no entanto, incomodam poucos, pois aparecem como imperativos naturais ou como imposições inelutáveis da vida em sociedade. Daí o paradoxo aparente: há convivência entre a retórica das fórmulas edificantes do “homem de bem” a e a complacência em relação aos jeitinhos, favoritismos, subornos, quebra-galhos, pistolões, tramóias, infidelidades, embustes, malandragens, como se esses arranjos todos não passassem de dribles indispensáveis para e sobreviver no mundo real, para todo o sempre definido como selva impiedosa.
3. Aliás, o filme brasileiro intitulado Central do Brasil — dirigido por Walter Salles Jr., e que ganhou em 1998 o Urso de Ouro no Festival Internacional de Berlim, além do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, conferido pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood — traduz com perfeição esse formalismo.
4. Algumas cenas são pungentes e emblemáticas: o menino Josué furta doces numa venda do sertão nordestino e sofre forte reprimenda da professora aposentada Dora (papel desempenhado por Fernando Montenegro, Urso de Prata como melhor atriz). Em seguida, a professora recolhe os saquinhos para devolvê-los, mas, em vez de recolocá-los na prateleira, aproveita a oportunidade para encher ainda mais sua bolsa com mantimentos! Fica patente a dicotomia entre o dito e o feito, a pregação e os atos que a desmentem, numa ilustração do velho mote do “faça o que eu digo, mas não faça o que faço”.
5. Dora reforça seu orçamento escrevendo cartas para analfabetos