Religião e cultura negra
Nada mais evasivo e delicado que as mudanças históricas de percepção e interpretação relacionadas a religião africana e seu processo complexo de continuidades e descontinuidades no Novo Mundo. Uma leitura atenta e detalhada dos títulos que surgiram cronologicamente na literatura a respeito nos permitiria levantar dados para uma história instrutiva do prejuízo racial ou, melhor ainda, das relações inter-étnicas e interculturais na América Latina, marcadas por forte etnocentrismo cultural por parte das elites detentoras do domínio institucional oficial, que não podem ser atribuídas apenas a contextos locais, reflexo e conseqüência, por sua vez, dos interesses e situações internacionais que vem sucedendo desde a implantação da escravidão, por assim dizer, produto do mercantilismo europeu.
A questão da religão africana nas Américas - suas origens, áreas de influência, dogma, doutrina, liturgia, sacerdócio, mutilações, perseguições, transformações, diversidade de estilos e unidade epistemológica latente - apesar de ser aparentemente a parte mais estudada, é a que mais precisa de um exame re-interpretativo. Esta revisão, que envolve a reformulação terminológica e conceitual quase total, deve ser de uma amplitude de perspectiva tal que permita, além de um estudo profundo da própria estrutura e conteúdos filosóficos, místicos e simbólicos da religião e da diversidade de suas manifestações, incluir seu significado histórico e contemporâneo como elemento fundamental que permitiu o processo dramático pela integridade psíquica e a preservação de um ethos latente específico que sobreviveu a todas as pressões do poder político-institucional.
Desde bruxaria, magia, sistema de superstições, fetichismo, animismo, sincretismo, até as mais puras classificações de cultos afro-americanos, toda a ampla gama de designações que retrata simultaneamente o quadro do relacionamento intercultural, levaria a negar o caráter de religião ao sistema místico deixado