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Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
– Perdida voz que de entre as mais se exila,
– Festões de som dissimulando a hora
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Vocabulário
Grácil: delgado, delicado, fino, sutil.
Festão: grinalda, ornamento em forma de grinalda.
Dissimulando: encobrindo, fingindo.
Carmim: vermelho, muito vivo.
Modulada: melodiosa, harmoniosa.
Cauta: cautelosa, tímida, prudente, cuidadosa.
Flébil: lacrimoso, choroso.
Remir: tirar do cativeiro, libertar; perdoar.
Deplorar: lastimar, chorar
Filho ilegítimo de um estudante de Direito de família aristocrática e de sua governanta, Camilo Pessanha nasceu em 1867, em Coimbra. Era época em que a sociedade portuguesa se via sacudida pela crítica impiedosa e agitadora dos realistas, os homens da “Ideia Nova”, que pretendiam “ligar Portugal com o movimento moderno”. Junto com esse modernismo vinha a obra de um dos pais de toda poesia moderna, Charles Baudelaire, morto no ano do nascimento de Pessanha.
Dez anos antes, Baudelaire publicara Les fleurs Du mal (As flores do mal), livro maldito em sua época e marco da história da literatura, com sua teoria das correspondências (o “templo da natureza” é concebido como uma “floresta de símbolos”, onde “os perfumes, as cores e os sons se respondem”), apresentando um novo método de percepção poética do mundo.
Em 1891 Camilo Pessanha forma-se em Direito na Universidade de Coimbra e, em 1894, parte como professor de liceu para Macau, colônia de Portugal na China. A literatura portuguesa desses anos conhecia a