Professor
Há quem diga que é um exagero, mas não seria de todo inexato dizer que devemos, ao menos em parte, o cânon bíblico a um herege que, mesmo herege, não deixou de prestar um serviço relevante à história da Igreja. Márciom, no segundo século, decidiu quais deveriam ser os textos inspirados e criou o primeiro cânon. Era uma seleção singular. O Deus do Antigo Testamento foi deixado de lado, porque não se coadunava com a revelação graciosa que ele identificou em Jesus de Nazaré. Desse modo, seu cânon era uma cuidadosa seleção de escritos, com especial destaque para as cartas de Paulo, o grande teórico da doutrina da graça. O que lhe parecia incompatível com esses ensinos foi cuidadosamente eliminado. Jeová, com suas guerras sangrentas, com suas imprecações e demonstrações de ira, obviamente nada tinha a ver com o Espírito gracioso que se manifestou na pessoa de Cristo. Num movimento notável, Márciom expurgou Jeová da Bíblia.
O desafio obrigou a Igreja a definir o que efetivamente era canônico; isto é, dentre os escritos que corriam nas igrejas, o que poderia ser julgado como divinamente inspirado. Os pais da Igreja e as principais autoridades que defendiam a ortodoxia formularam suas listas que, depois de inúmeros debates que se estenderam até o quarto século, terminaram na confecção do que hoje aceitamos como as escrituras sagradas.
A heresia de Márciom foi superada e a herança do Antigo Testamento foi integralmente preservada pela ortodoxia. Apesar disto, é de se reconhecer que se Márciom está morto, o cadáver é difícil de enterrar. De quando em quando seu fantasma reaparece para nos assombrar. Mesmo hoje, não é raro vermos Jeová sentado na cadeira dos réus, acusado de ser mera projeção das tendências sanguinárias do povo de Israel. Um Deus tribal, sedento de sangue, ciumento, iracundo, que não pode corresponder ao Deus de amor revelado nas páginas do Novo Testamento. Mesmo dentro da igreja há autores que atribuem tantos vícios ao Deus