onda machado de assis
Na pia chamara-se Aurora; Onda era o nome que lhe deram nos salões. Por quê? A culpa era dela e de Shakespeare; dela, que o mereceu; de Shakespeare, que o aplicou à instabilidade dos corações femininos. Tinha um coração capaz de abrigar seiscentos cavaleiros em dia de temporal, e até sem temporal. Batessem-lhe à porta, que a hospitaleira castelã abria sem maior indagação. Dava ao peregrino água para os pés, pão alvo e vinho puro para o estômago, leito macio e aquecido para o corpo. Mas, depois disto, fechava-se muito bem fechada em sua alcova, e, rezando a Deus pela paz dos viajantes alojados, dormia tranqüila em seu leito solitário. De tais facilidades em dar asilo a uns, mesmo quando outros ainda estavam sob o teto hospitaleiro, é que lhe nasceu a denominação que serve de título a estas páginas. Pérfida como a onda, disse um dia um dos enganados, vendo-a passar em um carro e indo parar à porta do Wallerstein. O nome pegou. Ora, vejamos, em minha imparcialidade de historiador, se esta denominação lhe quadrava. Coitadinha! não precisava muito tempo para ler-lhe nos olhos, adivinhar-lhe os gestos, traduzir-lhe nos sorrisos, a vivacidade, a dissimulação, a afabilidade que constituem o tipo da moça namoradeira. Via-se que ela conhecia a fundo esta arte de atrair e prender os corações e as vontades com um simples volver de olhos, um simples meneio de leque. Dera-lhe Deus uma beleza que era a sua base de operações. Não é que a beleza seja absolutamente necessária. Sei de alguém que reconheceu uma mulher cujas feições examinadas, uma por uma, não tinham traço algum de beleza; mas que sabia mover uns olhos que Deus lhe deu e de que ela, seja dito em honra da verdade, fazia um mau uso. Tão mau, que este alguém em questão, depois de se apaixonar por eles, achou-se um dia sem coração e sem futuro... Se era assim com aquela, o que não seria com esta, que, além de um par de olhos vivíssimos,