Tsunami na alma Em "Inundação", de Mia Couto, um rio corre pela casa, anunciando uma enchente de lembranças de um narrador inominado. Numa fração de segundos, vão se compondo imagens e sons de uma época provavelmente remota e, simultaneamente, atemporal: “E nós éramos meninos para sempre.” É uma narrativa encantadora, que não se limita a narrar os personagens apenas no aspecto físico, mas psicologicamente. Não há idealização, a linguagem é, ao mesmo tempo, simples e essencial. É o conhecido convite que se percebe ao leitor para que mergulhe, relaxado, no mundo ficcional, imaginário, viajando com o narrador autodiegético, em suas lembranças ou criações de uma realidade que não se sabe se existiu ou foi inventada. Mia consegue transmitir o sentimento íntimo da mulher africana, sem idealizá-la ou, muito menos deixar-se levar pelo preconceito dos países desenvolvidos, realçando-lhe os sentimentos peculiares. Ficamos cúmplices do protagonista no exercício de buscar na relação familiar o entendimento psicanalítico. O que quer o homem-menino em suas andanças pelo passado? Resolver alguma questão afetiva? Descobrir algo misterioso que o influencia na sua vida adulta? A prosa poética se realiza nem tanto pelo ritmo, mais pelas imagens que evoca – o fantástico no cotidiano apresentado de maneira natural, sem sobressaltos, suave. Provoca bastante a imaginação do leitor, algo que comumente só se consegue em um poema, como é possível perceber na abertura do conto: "Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança." O estilo de Mia Couto é uma corrente que nos leva diante do que é belo. O texto deve ser lido como um ato de contemplação de um pôr do sol, com todos os mistérios que isso pode nos provocar,