Metonímia, ou vingança do engano
Drama em três quadros
Rachel de Queiroz
Pois nessa cidade do interior havia um homem; não era velho, mas pior que velho, porque era gasto. Em moço sofrera de beribéri, o que lhe arruinou para sempre o futuro. Tinha as pernas fracas, o peito cansado e asmático, a cor terrosa, o olhar vidrado de doente crônico. Contudo era homem de algumas posses, casa própria com loja contígua, onde instalara o armazém; vivesse ele no Ceará, o armazém se chamaria bodega, em Pernambuco venda, no Pará mercearia, em São Paulo empório. E já que eu não quero designar o local do crime, qualquer nome desses serve. Bodega, ou empório, era comércio, e quem tem comércio tem dinheiro; de jeito que, apesar de tão mal ajambrado, o nosso homem casou. Justiça se faça, que não tentou a Deus com nenhuma beldade: procurou moça pobre, magrinha, operária numa oficina de roupas de homem. Diziam até que ela tinha cara de tísica. Mas não contava o prezado amigo com os efeitos da boa nutrição no metabolismo feminino. Sei é que cara de tísica, livrando-se das oito horas de trabalho à mesa de costura, passando a comer bem, em casa sua, a boa carne fresca, o seu bom tutu, a sua salada de pepino, os doces de lata, as doces laranjas da serra que o marido comprava aos centos para a freguesia, mudou como se fosse encantada. Começou a botar corpo, a aumentar as polegadas nos lugares certos – parece até que estava crescendo. E as cores do rosto, então! Ainda mais que, com a afluência do dinheiro, deu para se vestir bem, se pintar, ondular o cabelo, usar engenho e arte a fim de aumentar os dotes naturais, pois não sei se contei que, de cara mesmo, ela não tinha nada de feia. E assim bela e assim vestida e assim pintada e formosa, começou a lhe pesar o marido enfermiço, envelhecido antes do tempo. Que, mal fechava o armazém, tomava a janta de leite (tinha na cadeira preguiçosa até a hora de ir para a cama. Não queria saber de cinema, nem de futebol, nem sequer de rádio.