Merda
Que é frequente persuadir-me B
De que sou sentimental, C
Mas reconheço, ao medir-me, B
Que tudo isso é pensamento, A
Que não senti afinal. C
Temos, todos que vivemos, D
Uma vida que é vivida E
E outra vida que é pensada, F
E a única vida que temos D
É essa que é dividida E
Entre a verdadeira e a errada. F
Qual porém é a verdadeira G
E qual errada, ninguém H
Nos saberá explicar; I
E vivemos de maneira G
Que a vida que a gente tem H
É a que tem que pensar. I
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.
Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei-de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.
Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.
(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negro sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo —
Ah, nada é isto, nada é assim!)