Literatura
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Revista Espaço Acadêmico- N. 54 - Novembro 2005- Mensal ISSN: 1519 6186 ANO V
Entre espelhos velados: brincando com reflexos
Uma de minhas insistentes súplicas a Deus e ao meu anjo da guarda era não sonhar com espelhos. Sei que os vigiava com inquietação. Algumas vezes, receei que começassem a divergir da realidade; outras, ver meu rosto neles desfigurado por adversidades estranhas. Soube que esse temor está, outra vez, prodigiosamente no mundo.
Jorge Luis Borges
Escrevemos para criar outros mundos, reinventando lugares e errâncias. Mas como se pode engajar toda a existência na inquietude de pôr em ordem um certo número de palavras? Pergunta-nos Maurice Blanchot (apud COSTA LIMA, 1993: 39). Talvez pelo nomadismo que possibilita nossa existência, que em sua própria etimologia invoca um sair de si. Somos pássaros migrantes, sempre em fuga diante de tudo o que nos impeça de voar. Mesmo que nossos pés precisem de um solo e, em alguns momentos nos acostumemos com os exílios, por neles encontrarmos alguma proteção, sonhamos com a aventura.
A metáfora do espelho, em Jorge Luis Borges (1899-1986), nos seus escritos sobre Os Espelhos e os Espelhos Velados, levam-nos pensar que diante de narrativas espelhadas é que vemos o mundo. Jogos de espelhos que se refletem nas palavras, que adormecem levemente sobre a superfície das coisas, no rosto de uma pessoa amada, num ideal, num desejo, enfim, na maneira de sermos e expressarmos nossa demasiada humanidade. Assim:
O cristal nos espreita. Se entre as quatro
Paredes do aposento há um espelho,
Não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que arma na aurora um sigiloso teatro. (BORGES, 1987).
Talvez o nosso primeiro espelho velado seja o rosto amado, espelho no qual olhamos e nos confundimos com as nossas imagens e as do outro, olhar sempre à espreita, sempre em encanto e desamparo diante do que há por vir.