Iracema
O livro já começa duro e assustador. No segundo parágrafo deparamo-nos com o grito de um personagem: "Estou cego". E a maneira como Saramago escreve, com poucos pontos, muitas vírgulas e discurso corrente, faz com que os acontecimentos passem pela mente do leitor com uma velocidade incrível: vão-se cegando vários personagens sem que possamos dar uma pausa para respirar. E quando finalmente resolvemos parar, percebemos que o autor não deu nome à cidade, não datou os acontecimentos e manteve seus personagens anônimos, conhecidos apenas como "a mulher do médico", "o homem da venda preta", "a rapariga dos óculos escuros" ou "o cão das lágrimas". Deixando este relato tão aberto à imaginação do leitor, é impossível não temermos uma verdadeira epidemia, imaginarmos como agiriam as autoridades em uma situação como essa, como o medo faria vir à tona os instintos mais escondidos dos homens.
No entanto, entre tantos cegos presos em um manicômio por ordem governamental, existe uma mulher que ainda consegue enxergar. É a esposa do médico, que faz lembrar outra personagem de Saramago: Blimunda, de Memorial do Convento, que tinha a capacidade de enxergar o interior das pessoas, mas nem por isso sentia-se afortunada, pois algumas vezes tinha que ver aquilo que não queria. Da mesma maneira, a mulher do médico é a única que pode ver as belas e horrorosas imagens descritas pelo autor, seja o lindo banho de chuva das mulheres na varanda ou os cachorros que devoram o cadáver de um homem na rua. Ela não sabe se é abençoada ou amaldiçoada por poder enxergar em uma terra de cegos.
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