HAMLET DE SHAKSPEARE
Universidade do Porto
Hamlet: a peça e o livro*
Para quem tenha um envolvimento profissional com o ensino da literatura, num ambiente em que prevalece a inquirição céptica do cânone a partir de posições teórico-críticas inspiradas pelo que alguns designaram como as “hermenêuticas da suspeita”, é hoje uma oportunidade relativamente rara ser convidado a falar, nesses termos exactos, de “grandes livros”. Quando o “grande livro” em causa contém uma peça de teatro, acresce a essa eventual reserva a resistência, que desde meados do séc. XX se revelou também crescente, à consideração de que um texto dramático possa, sem uma consequência fortemente redutora para o entendimento das condições específicas da sua semiose, ser tratado como um objecto literário (tout court).
O que se segue obedecerá ao simples propósito de produzir algumas considerações sobre os termos em que hoje nos podemos dirigir a Hamlet como um “grande livro”.
Comece-se por reconhecer o óbvio: a atracção continuada de um dos textos imaginativamente mais produtivos e com maior consequência na história da literatura e do teatro.
Assinale-se também que somos herdeiros (certamente afortunados) de uma conformação cultural em cujo âmbito (em particular nos últimos dois séculos, e não apenas no mundo de expressão inglesa) Shakespeare se tornou instância máxima do culto da figura autoral; e em que a Hamlet e a Hamlet é em regra atribuído o lugar respectivamente de seu opus magnum e de personagem que supostamente melhor representa
(por sinédoque) a complexidade do desígnio artístico do dramaturgo e de toda a sua obra. Mas note-se, por outro lado, que esta herança encontrou em décadas recentes acolhimentos distintos: a verificação do impacto cultural ímpar e imaginativamente produtivo (na literatura, na história intelectual, nas artes) de um texto como Hamlet só assume hoje cariz celebratório e registo encomiástico fora do discurso especializado.
Releva tal circunstância,