Gota D´água
(Chico Buarque)
PRIMEIRO ATO
O palco vazio com seus vários sets à vista do público; música de orquestra; no set das vizinhas, quatro mulheres começam a estender peças de roupa lavada, lençóis, camisas, camisolas, etc.; tempo; Corina chega apressada, sendo recebida com ansiedade pelas vizinhas.
CORINA — Não é certo...
ZAÍRA — Como é que foi?...
ESTELA — Foi lá?
CORINA — Não é certo...
MARIA — Ela não melhorou, não?
CORINA — É de cortar coração...
NENÊ — Mas e então?
CORINA — Não sei, não dá, certo é que não está
E olhe bem que aquilo é muito mulher
ZAÍRA — Ela é bem mais mulher que muito macho
ESTELA — Joana é fogo...
MARIA — É fogo...
NENÊ — Joana é o diacho
CORINA — Pois ela está como o diabo quer
Comadre Joana já saiu ilesa
De muito inferno, muita tempestade
Precisa mais que uma calamidade pra derrubar aquela fortaleza
Mas desta vez... acho que não agüenta, pois geme e treme e trinca a dentadura
E, descomposta, chora e se esconjura
E num soluço desses se arrebenta
Não dorme, não come, não fala certo, só tem de esperto o olhar que encara a gente e pelo jeito dela olhar de frente, quando explodir, não quero estar por perto
ESTELA — Culpa daquele muquirana
ZAÍRA — Tudo por causa dum Jasão
CORINA — E além da pobre da Joana tem as crianças...
MARIA — Onde estão?
CORINA — Minha filha, só vendo
Tem resto de comida nas paredes fedendo a bosta, tem bebida com talco, vaselina, barata, escova, pente sem dente. E ali, menina, brincando calmamente co’os cacos dos espelhos, estão os dois fedelhos...
É ver sobra de feira, ramo de arruda, espada de São Jorge, bandeira do Flamengo, rasgada por cima da cadeira
E ali, se lambuzando, não entendendo nada,
um pouco se espantando co’o espanto dos vizinhos, estão os dois anjinhos...
É ver um terremoto que só deixa aprumado no lugar certo a foto daquele desgraçado posando pro futuro e pra posteridade
E ali, num canto escuro, na foto da verdade,