Fichamento A hora da estrela
(CLARICE LISPECTOR)
FICHAMENTO:
Dedico- me à saudade de minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta. Dedico- me à tempestade de Beethoven. À vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos.
Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter em pé, tão tanto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação.
Eu medito sem palavras e sobre nada. O que me atrapalha a vida é escrever. (Dedicatória do Autor)
Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever. (pag. 11)
A dor de dentes que perpassa essa historia deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e a minha falta de felicidade. (pag. 11)
É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. (pag. 12)
[...] que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro- existe a quem falte o delicado essencial. (pag. 12)
Bem, é verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem principal, a nordestina: é um relato que desejo frio. Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio, e não vós. (pag. 13)
O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça ente milhares delas. É dever meu, nem que seja de puçá arte, o de revelar-lhe a vida. (pag. 13)
Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo pra vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. [..] também eu não faço a menor falta e até o que escrevo um outro escreveria.