Erro de Descartes
Não teria sido possível apresentar minha participação nesta conversa sem ter invocado Descartes como símbolo de um conjunto de idéias acerca do corpo, do cérebro e da mente que, de uma maneira ou de outra, continuam a influenciar as ciências e as humanidades no mundo ocidental. A preocupação é dirigida tanto à noção dualista com a qual Descartes separa a mente do cérebro e do corpo como às variantes modernas dessa noção: por exemplo, a idéia de que mente e cérebro estão relacionados mas apenas no sentido de a mente ser o programa de software que corre numa parte do hardware chamado cérebro; ou que cérebro e corpo estão relacionados, mas apenas no sentido de o primeiro não conseguir sobreviver sem a manutenção que o segundo lhe oferece.
Qual foi, então, o erro de Descartes? Ou, melhor ainda, a que erro de Descartes me refiro com ingratidão?
Poderíamos começar com um protesto e censurá-lo por ter convencido os biólogos a adotarem, até hoje, uma mecânica de relojoeiro como modelo dos processos vitais. Mas talvez isso não fosse muito justo, e comecemos, então, pelo ”penso, logo existo”. Essa afirmação, talvez a mais famosa da história da filosofia, surge pela primeira vez na quarta seção de O discurso do método (1637), em francês (”Je pense, doncje suis”);e depois na primeira parte de Princípios da filosofia (1644), em latim (”Cogito ergo sum”).3 Considerada literalmente, a afirmação ilustra exatamente o oposto daquilo que creio ser verdade acerca das origens da mente e da relação entre a mente e o corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o ato de pensar como uma atividade separada do corpo, essa afirmação celebra a separação da mente, a ”coisa pensante” (rés cogitans), do corpo não pensante, o qual tem extensão e partes mecânicas (rés extensa).
No entanto, antes do aparecimento da humanidade, os seres já eram seres. Num dado ponto