Crónica de Baptista Bastos
Estou rodeado de noite e de silêncio. Uma ou outra luz, no prédio da frente. Sei que no apartamento da direita mora um contabilista. Homem consumido e fatigado, conheço-o de vista, arredonda a conta ao fim do mês com trabalhos esparsos. A noite, agora, foi rasgada pelo silvo de uma ambulância. Aproximo-me da janela, movido sei lá bem porquê?, e observo a caminhada de um retardatário. De onde vem? Do trabalho ou da noitada? Começo a adivinhar-lhe a vida e o destino. Faço estas aproximações desde que me conheço. Ainda não há muitos anos procurava calcular em que se ocupavam os transeuntes pelo som dos passos, construir as suas vidas, conjecturar das suas histórias; fabular, enfim.
Mas as coisas e as pessoas alteraram-se. Eu próprio me modifiquei e ao modo de avaliar os outros. Volto à secretária, batuco nas teclas, acabei de escrever acerca de Jorge Amado, vou ser avô pela segunda vez, e dentro de poucos dias. Estou contente e atento. Não digo que estou feliz porque tudo o que me rodeia incita-me ao desgosto e ao desamparo. Penso no miúdo que vai nascer e no mundo que vai encontrar. Falo para ele e digo-lhe que, apesar de tudo, vale a pena tocar no batente e entrar aqui. Estamos à tua espera, meu rapaz. Parece que o ouço, ouvi-o mesmo, sussurrar qualquer som com o significado de uma aleluia.
Já tem nome: é o Manuel e vai juntar-se ao mano, o Francisco, numa família grande e calorosa: uns lavram a terra; outros lavram as palavras; outros tratam e curam os outros; e há os que cuidam de todos. Já aí vem. Um escasso espaço de tempo e cá estará. Viram-lhe o rosto, na ecografia, e é um rosto muito belo, como o do Francisco, e qualquer dos dois tem nome de rei. Uma emoção estremecida cola-se-me ao coração e aos olhos. Só os avós sabem o que este avô quer dizer.
Estou rodeado de noite e de silêncio. A noite é um outro mundo, e mais de metade da minha vida foi passada na noite. Máquinas de escrever, retinir dos telefones, remíntones, azucrinar