Cordialidade E Familismo Amoral
Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves
Cordialidade e familismo amoral: sumário do atraso
Raízes do Brasil é uma tentativa audaciosa de empreender uma arqueologia do nacional. Toda a obra é atravessada pela indagação a respeito das condições de possibilidade da convergência entre um ethos cordial e os postulados de uma ordem racionalizadora e formalista. Para responder à questão, Sérgio Buarque de Holanda remonta ao período colonial, buscando a gênese deste ethos e da cultura que o materializa, de maneira a esclarecer os princípios que orientariam a conduta do brasileiro. De acordo com o autor, a colonização do Brasil foi profundamente marcada pelas peculiaridades da cultura ibérica, notadamente por sua extrema valorização da autonomia da personalidade. Trata-se da cultura da "sobranceria", na qual cada um tenta elevar-se diante dos demais, demonstrando independência, prestígio e superioridade. Numa cultura com tal característica, as condutas seriam sempre orientadas por um espírito de fidalguia, relacionado à percepção de uma dignidade e mérito próprios e singulares. Trata-se, portanto, de uma sociedade hierarquizada, onde a recusa de qualquer valor igualitário obstaculiza relações horizontais de tipo associativo, ao mesmo tempo que demanda um "princípio unificador externo [...] representado pelos governos" (Holanda, 1994, p. 9). O Estado aparece, assim, como pólo ativo numa relação em que a sociedade, marcada pela presença de indivíduos que buscavam permanentemente a fidalguia, mostrava-se incapaz de qualquer iniciativa em direção ao autogoverno. Com efeito, conforme percebe Sérgio Buarque, numa sociedade marcada tão profundamente pela "exaltação extrema da personalidade", o único princípio político capaz de ordenar a vida em sociedade é a obediência: "não existe [...] outra sorte de disciplina