Conto "O leproso"
Foi no Doiro, numa cava. Ao meio dia, a Margarida veio trazer o jantar, e embora a sardinha salgada e o caldo de gravanços tirassem a coragem ao mais pintado, a cara da rapariga desanuviava os horizontes.
Era nova, sadia, alegre e de resposta sempre na ponta da língua. Por isso sabia bem dar-lhe um apertão, passar-lhe sornamente o braço pela cintura, e ouvir-lhe depois os protestos vivos e desembaraçados.
- Ó seu alma do diabo, você cuida que isto é comida de cães?
Todo o eito se ria, a moça continuava a distribuir tigelas, e a fome, a fadiga, a injustiça, e as demais inclemências da natureza e dos homens, ficavam esquecidas por um momento. - Toma lá tu, meu pinga-amor!
Era a vez do Julião, e o rapaz, que de fato olhava a Margarida com olhos de carneiro mal morto, não resistiu à tentação de lhe tocar no seio com as costas da mão.
- Ó meu leproso dos infernos! Olha que eu atiro-te o cesto ao focinho!
Houve um largo riso de galhofa, mas houve também um estalo na consciência do
Julião. Leproso!
A sua íntima inquietação, a sua desconfiança contínua e já velha, ouviam pela primeira vez uma resposta, trágica como uma sentença de condenação: leproso!
Havia muito que qualquer coisa em si medrava como o fungo nas espigas verdes.
Cresciam-lhe na cara gomos de carne dura, insensível e vermelha. Desconhecia, porém, a gravidade do mal, e ninguém, até ali, tivera a crueldade de lho nomear. Amofinado de angústia, estudava ao espelho, com minúcias de investigador, as sutis modificações da expressão, a transfiguração progressiva do rosto, mas o chamadoiro da sua desgraça era um mistério. E o que o coração temia sem saber, o que a razão não descobrira claramente, estava ali irreparável e cruel: leproso.
Calou-se, engoliu a custo duas garfadas, foi pôr a malga quase intacta no cesto, e sentou-se a uma sombra, a bater estupidamente com um pedaço de pedra no moirão da ramada. - Ó Julião, tu parece que não esperavas pela resposta?