Bibliografia
Texto Poético
Ouve, com muita atenção, a leitura gravada do poema «O limpa-palavras».
O limpa-palavras
O limpa-palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado: a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
Quase todas as palavras precisam de ser limpas e acariciadas: a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
É preciso raspar-lhes a sujidade dos dias e do mau uso.
Muitas chegam doentes, outras simplesmente gastas, estafadas, dobradas pelo peso das coisas que trazem às costas.
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos, podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar e é preciso fechá-la na arrecadação.
No fim de tudo voltam os olhos para a luz e vão para longe, leves palavras voadoras sem nada que as prenda à terra, outra vez nascidas pela minha mão: a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.
A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas e lavadas como seixos do rio: a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
Vão à procura de quem as queira dizer, de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes um braço para apanhares a palavra barco ou a palavra amor.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.
Álvaro Magalhães,
O Limpa-palavras e Outros Poemas