Amor
O livro e o filme são os eventos culturais recentes (um lançado na Bienal, o outro em cartaz há uma semana) que de modo mais contundente retrataram a realidade brasileira. São o negativo da imagem de que a cultura oficial se vale para justificar as comemorações dos 500 anos, já que ambos tratam de demolir esse Brasil “dom de Deus e da Natureza”, de povo pacífico, ordeiro, alegre e sensual, onde o sincretismo impede o preconceito. Esse Brasil onde os contrastes regionais ressaltam a pluralidade cultural e onde em se plantando tudo dá. As origens desse imaginário de “Aquarela do Brasil”, Chauí identifica no “mito fundador”, cuja gênese remonta à chegada de Cabral. Parêntese: não é à toa o emprego da expressão “mito”. No texto da filósofa, ele está presente em suas três acepções: a etimológica, como narração pública de feitos lendários da comunidade. A antropológica, como solução imaginária para conflitos que não encontram solução no plano do real. E a psicanalítica, como impulso à repetição de algo imaginário que bloqueia a percepção da realidade e impede que se lide com ela. É em todos esses sentidos que, segundo o argumento de Chauí, o mito de um Brasil idílico foi se arraigando no inconsciente do país ao longo dos séculos para tornar possível um projeto nacional arcaico e mascarar a realidade que a ele subjaz: a da iniqüidade e da opressão. Ou seja, por baixo da retórica, existe uma sociedade em que as relações sociais se dão sempre entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. “O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade”, escreve ela. A bloquear a percepção de nossa própria truculência,