Revista CULT – n.142 A importância de Beckett para a modernidade Desconcertante e plural, a obra de Samuel Beckett foi decisiva para a reinvenção da arte moderna Fábio de Souza Andrade A certa altura de Vinicius (2005), documentário de Miguel Faria sobre o “poetinha” carioca, um depoimento do poeta Ferreira Gullar deriva para um ânimo filosofante um tanto ligeiro e acaba por levar a uma classificação dos homens em dois tipos. Para o autor do “Poema sujo”, de um lado, há os que, esperançosos, escolhem ver o copo ainda cheio pela metade, celebrando a vida no que ela tem de realizadora e feliz, e, de outro, os amigos do não, apocalípticos, que teimam em percebê-la como vaso quase vazio, a caminho do fim e do nada. No filme, essa polarização cumpre uma finalidade retórica: a de recortar um Vinicius de Moraes hedonista, amoroso e sem arestas, figura alegórica de um tempo brevemente feliz – o Brasil da bossa nova e dos anos JK – e de um lugar social restrito – a classe média do Rio. Visão parcial, que elide tanto uma melancolia latente, que mesmo a mais luminosa das canções de Vinicius guarda como contraponto, quanto a impossibilidade de transformar o país numa imensa Ipanema. Empenhado, Gullar troca sua tese em miúdos: na literatura, o arquétipo dos “chatolas” destrutivos, dos que escolhem ver a vida em cinza e negro, seria Samuel Beckett, o irlandês nascido em Foxrock, subúrbio abastado de Dublin, em 1906, e morto em Paris, há 20 anos. Simplista quanto pareça, essa disjunção de base equivocada ainda resiste, pouco arranhada, às sucessivas ondas de recepção crítica e teórica que a obra beckettiana, em suas múltiplas faces (peças, romances, ensaios, poemas), vem suscitando. Difíceis e desconcertantes, drama e prosa do autor de Esperando Godot recusam a acomodação de suas tensões internas em pares conceituais antípodas como otimismo/pessimismo ou realismo/absurdo. São formas de expressão pensada e cifrada de impasses estruturais que vão muito além de seus limites. Também